PERSE: artigo aborda violação à legalidade tributária e erosão da segurança jurídica
Segundo Leonardo Volpatti, revogação do PERSE revelam quadro preocupante de retração autoritária do Estado

Leonardo Volpatti, advogado, cientista político e mestrando em Direito Público e Regulação, além de especialista em Direito Tributário e Relações Governamentais, revelou em artigo que a implementação e a revogação do PERSE revelam um quadro preocupante de retração autoritária do Estado, violação à legalidade tributária, e de erosão da segurança jurídica. Descubra o porque abaixo.
PERSE, Receita Federal e a Crise da Legalidade Tributária: Quando o Fisco Viola a Segurança Jurídica e o Judiciário Precisa Reagir
O Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (PERSE), instituído pela Lei nº 14.148/2021, emergiu como resposta legislativa à tragédia econômica que assolou o setor de eventos e turismo durante a pandemia da Covid-19. Ao prever a isenção de tributos federais por 60 meses, o PERSE representou um pacto institucional entre Estado e contribuinte, fundado no reconhecimento da gravidade do cenário vivenciado por empresas do setor. No entanto, a sua implementação — e sobretudo sua revogação — revelam um quadro preocupante de retração autoritária do Estado, violação à legalidade tributária, e de erosão da segurança jurídica.
A ofensiva fiscal contra o PERSE
A partir da publicação da lei, a Receita Federal e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) passaram a editar normas e atos administrativos que impuseram restrições não previstas no texto legal. Exigiu-se, por exemplo, que as empresas estivessem previamente cadastradas no CADASTUR, e que tivessem como CNAE principal a atividade enquadrada no anexo da norma, excluindo da fruição do benefício empresas com CNAEs secundários ou que atuassem em atividades conexas.
Tais restrições não encontram amparo na Lei nº 14.148/2021, tampouco foram discutidas ou aprovadas pelo Congresso Nacional naquela ocasião. Trata-se de uma ampliação indevida do poder regulamentar da Administração Tributária, violando o princípio da legalidade estrita (art. 150, I, da CF) e o devido processo legal tributário. A situação se agravou com a tentativa de extinção do benefício por Medida Provisória (MP nº 1.202/2023), e culminou, mais recentemente, com o Ato Declaratório Executivo da Receita Federal publicado em 26 de março de 2025, que marcou o ponto mais crítico desse embate.
A violação frontal ao art. 150 da Constituição
O art. 150, III, alíneas “b” e “c” da Constituição Federal estabelece que nenhum tributo será cobrado no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que o instituiu ou aumentou (anterioridade anual), nem antes de 90 dias da data em que tenha sido publicada (anterioridade nonagesimal). A função dessas garantias é proteger o contribuinte de surpresas fiscais, assegurando-lhe tempo para reorganizar sua estrutura e evitar ônus retroativos ou intempestivos.
Ao extinguir o PERSE numa segunda-feira (26/03/2025) e reiniciar a apuração tributária já na terça-feira seguinte (01/04/2025), para recolhimento em maio, o Estado violou essas garantias de forma inequívoca. O impacto não foi apenas econômico, mas institucional: as regras do jogo foram alteradas sem qualquer transição razoável previsto em lei ou respeito aos marcos constitucionais.
O descumprimento do art. 4º-A da Lei do PERSE
A ilegalidade da revogação se manifesta também na omissão deliberada do art. 4º-A da própria Lei nº 14.148/2021, inserido pela Lei nº 14.592/2023. Esse artigo estabeleceu um rito procedimental para eventual reavaliação dos benefícios, exigindo:
- Relatórios bimestrais de acompanhamento dos impactos fiscais do PERSE;
- Audiências públicas para demonstração dos dados;
- Análise e aprovação expressa do Congresso Nacional, como condição para modificação da política pública.
Nada disso foi cumprido. A audiência pública realizada na Comissão Mista de Orçamento em 13 de março de 2025 não resultou na aprovação formal de relatório técnico, tampouco houve deliberação pelo Congresso Nacional. O ADE de 26 de março, portanto, carece de fundamento legal e procedimental, constituindo verdadeiro ato normativo unilateral, sem lastro jurídico.
A tentativa de revogação por meio de instrumento infralegal, sem observância das etapas exigidas por lei, ofende diretamente os princípios da legalidade, da segurança jurídica, da previsibilidade fiscal e do controle democrático do gasto público. A forma se impõe ao conteúdo, especialmente em matéria tributária, onde a rigidez procedimental é escudo contra o arbítrio arrecadatório.
A jurisprudência do STF e o precedente do caso REINTEGRA
Em importante precedente recente, o STF reafirmou, sob repercussão geral, que a revogação ou redução de benefícios tributários relativos a contribuições sociais deve respeitar a anterioridade nonagesimal. A decisão é coerente com a linha de raciocínio desenvolvida por Tarsila Ribeiro Marques Fernandes, no texto “Princípio da anterioridade aplicado às contribuições: o caso do REINTEGRA”, publicado na obra Contribuições: evolução jurisprudencial no CARF, STJ e STF (MP, 2022).
A autora defende que a segurança jurídica exige que regimes fiscais instituídos por lei só possam ser alterados mediante processo legislativo regular e com respeito à cláusula da anterioridade. O caso do REINTEGRA envolvia situação análoga: a tentativa de revogar incentivo fiscal com efeitos quase imediatos, gerando imprevisibilidade tributária e rompendo a confiança legítima do contribuinte. De modo similar, a Súmula 544 do STF fixa que “isenções tributárias concedidas, sob condição onerosa, não podem ser livremente suprimidas.”
O papel do STJ: estabilização e controle
Diante da multiplicidade de ações judiciais e decisões divergentes nos Tribunais Regionais Federais, é inevitável que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) seja provocado a uniformizar a interpretação da Lei nº 14.148/2021. Já há indicativos de que recursos serão afetados sob o rito dos recursos repetitivos (art. 1.036 do CPC), especialmente no que diz respeito:
- à duração da isenção de 60 meses;
- à aplicabilidade para CNAE secundário ou atividades conexas;
- à validade das condicionantes criadas por normas infralegais;
- e à necessidade de cumprimento do rito previsto no art. 4º-A para qualquer alteração no programa.
O STJ será chamado, portanto, a exercer sua função institucional de garantir estabilidade, coerência e integridade do Direito Tributário, reafirmando que o Estado está vinculado não apenas à arrecadação, mas ao devido processo legal e ao respeito à confiança que ele próprio gera.
Considerações finais: o PERSE como sintoma de um problema maior
O caso PERSE não é apenas uma controvérsia fiscal. Ele revela um conflito estrutural entre a administração fazendária e o ordenamento jurídico, entre a ânsia por arrecadação imediata e o compromisso com a estabilidade jurídica. O Judiciário tem agora a oportunidade de restaurar esse equilíbrio.
Se as cortes superiores não contiverem essa escalada de abusos normativos por via infralegal, nenhum benefício fiscal futuro será confiável, e o Estado perderá sua credibilidade como garantidor de políticas públicas de fomento. O PERSE precisa ser defendido não apenas como instrumento econômico, mas como símbolo da integridade legislativa e da força normativa da Constituição.