Artigo aborda os desafios de companhias e fabricantes em acompanhar a demanda aérea global
A escassez de componentes e matérias-primas tem impactado diretamente a produção das aeronaves

Se já não bastasse os desafios enfrentados pelas companhias aéreas e fabricantes desde a pandemia, como a falta de peças, atrasos logísticos e escassez de mão de obra técnica, agora questões geopolíticas e barreiras comerciais estão freando ainda mais a capacidade da indústria de produzir, entregar e manter aeronaves num momento em que a demanda global por voos cresce de forma acelerada.
Este é o tema do artigo de Dany Oliveira, engenheiro industrial, especialista em aviação e ex-Country Manager da Iata no Brasil. Confira na íntegra abaixo.
A Crise Invisível na Cadeia de Suprimentos e os Problemas Visíveis para a Democratização do Transporte Aéreo
Como engenheiro industrial com mais de 20 anos de experiência, creio que posso iniciar este texto com a seguinte observação técnica: se existe um setor em que cada porca, parafuso ou sensor pode travar bilhões de dólares em operações globais, este setor é, sem dúvidas, a aviação. E uma de suas engrenagens fundamentais - a cadeia de suprimentos - tem enfrentado sérias dificuldades para funcionar adequadamente.
Com a retomada do tráfego aéreo no pós-pandemia e a crescente demanda global por novas aeronaves, esperava-se um ciclo virtuoso de crescimento. Mas nos últimos anos, o que temos observado é um problema silencioso, progressivo e cada vez mais sistêmico. A cadeia de suprimentos aeroespacial, já operando sob alta utilização, agora revela um intricado desequilíbrio entre a busca por eficiência de custos e a necessidade de flexibilidade e capacidade de resposta.
Essa cadeia, complexa e interdependente, tornou-se um gargalo central. Não por um único fator, mas por uma soma de eventos. Falta de peças, atrasos logísticos, escassez de mão de obra técnica e agora questões geopolíticas e barreiras comerciais, estão freando a capacidade da indústria de produzir, entregar e manter aeronaves num momento em que a demanda global por voos cresce de forma acelerada, especialmente nos mercados emergentes.
A globalização levou à concentração de fornecedores em regiões específicas, como no caso da China, aumentando o risco de interrupções nos suprimentos. Modelos de produção enxuta, ao minimizarem estoques e capacidade ociosa, trouxeram menos resiliência a choques e variações inesperadas na demanda ou no fornecimento. Essa combinação tem potencial para tornar as operações produtivas mais vulneráveis a uma variedade de riscos, desde problemas com fornecedores individuais até eventos globais que afetam as cadeias de suprimentos.
E é exatamente isso que está acontecendo agora!
A escassez de componentes e matérias-primas tem impactado diretamente a produção dos grandes fabricantes de aeronaves, ficando abaixo das metas de entrega, por problemas com alguns fornecedores além de acumular custos adicionais. A expectativa é que o aumento da produção ocorra apenas a partir de 2029, após superação dessas restrições.
O setor também tem sido impactado por tensões geopolíticas e disputas comerciais com aumento de tarifas e restrições de exportação, especialmente de semicondutores que são essenciais para sistemas críticos como aviônicos, controle e segurança. A forte dependência de componentes importados expõe a indústria a riscos decorrentes de políticas protecionistas, enquanto as iniciativas para ampliar a produção doméstica de semicondutores ainda são insuficientes para atender à demanda atual — resultando em custos elevados e prazos de entrega mais longos.
E por falar em aumento de custos, os contratos de fornecimento aeroespacial raramente contemplam ajustes rápidos a eventos geopolíticos, como sanções, tarifas ou bloqueios. Recentemente, uma grande fornecedora de peças para motores e fuselagens passou a se proteger juridicamente contra tarifas e restrições comerciais, incluindo cláusulas de "força maior" para justificar atrasos ou interrupção de entregas caso não houvesse compensação tarifária - um movimento que acendeu um alerta em toda indústria.
Segundo dados públicos dos maiores fabricantes de aeronaves, há hoje aproximadamente 17 mil aeronaves encomendadas. Em 2024, as entregas de novos aviões ficaram 25% abaixo da média entre 2015 e 2018. Isso significa que uma nova compra de aeronave feita atualmente pode demorar de 11 a 13 anos para ser entregue.

Enquanto os fabricantes enfrentam gargalos na produção, as empresas aéreas lidam com um drama mais humano: a escassez de técnicos de manutenção. Sem profissionais qualificados, revisões programadas e aumento no tempo de permanência das aeronaves em solo se acumulam encarecendo a operação aérea. A modernização da formação técnica e incentivos para novos talentos são urgentes, mas esbarram em entraves burocráticos e na falta de articulação entre governo e o setor privado.
A consequência imediata é clara: não há aviões suficientes para atender à crescente demanda de passageiros e cargas. Isso obriga as empresas aéreas a manterem por mais tempo frotas antigas que são menos eficientes, mais poluentes e mais caras de voar, operar com níveis recordes de ocupação além de restringir a abertura de novos mercados e a ampliação da oferta de voos. Essa realidade é particularmente grave nos países em desenvolvimento, onde o acesso ao transporte aéreo ainda é limitado.
Para mitigar esses desafios, as empresas aéreas têm adotado diversas medidas como o retrofit da frota atual, codeshare, parcerias estratégicas, ACMI etc. Essas ações ajudam a manter a capacidade operacional, mas não resolvem os problemas estruturais de longo prazo. A gestão de custos se torna crucial para equilibrar os impactos financeiros enquanto a indústria aguarda a normalização da produção. O backlog de entregas e as tensões geopolíticas sugerem que a recuperação total pode levar anos, exigindo uma abordagem proativa e colaborativa entre todos os stakeholders.
Superar esse cenário exige mais do que soluções pontuais. É necessária uma resposta estratégica de governos e da indústria, com medidas que combinem planejamento, investimentos robustos e políticas públicas direcionadas. Governos devem assumir papel ativo, com incentivos fiscais, financiamento à inovação e políticas industriais voltadas à aviação, especialmente em países continentais como o Brasil.
Pouco visível ao público, mas essencial para o funcionamento da indústria, a crise na cadeia de suprimentos afeta não apenas as empresas aéreas, mas o futuro da conectividade, da “inclusão aérea” e da transição energética.
A aviação não é apenas uma indústria: é um motor de crescimento, inclusão e competitividade. Quando passa por essas restrições, outras cadeias econômicas são impactadas: turismo, comércio, logística, exportação, geração de empregos, inovação etc.