Renato Machado   |   13/03/2020 10:00

Geleiras também falam - parte 8

Confira também a edição desta semana da Revista PANROTAS, que traz uma matéria completa sobre a viagem


Renato Machado
A imponente geleira em Neko Harbor, fazendo o Le Soléal (à esquerda) e seus 142 metros de comprimento parecerem pouca coisa
A imponente geleira em Neko Harbor, fazendo o Le Soléal (à esquerda) e seus 142 metros de comprimento parecerem pouca coisa
ANTÁRTICA - Quando eu iniciei este diário de bordo da expedição antártica que fiz com a Ponant, eu descrevi a jornada como uma experiência que havia mexido com todos os meus sentidos. Não era força de expressão, eu estava sendo literal. Hoje, na oitava e última parte do meu relato, eu me despeço com uma das tantas lições que a visita ao mundo remoto do da Antártica me proporcionou.


Obviamente a minha visão era o sentido mais exercitado. Diariamente eu me deparava com cenários e animais novos, era preciso foco para compreender toda aquela avalanche de imagens. O tato era agraciado com diferentes texturas de gelo e neve, o olfato tinha que lidar com o característico cheiro dos pinguins e o paladar, por incrível que pareça, entrou no jogo quando uma onda desavisada bateu no meu bote e me fez provar a salgada água antártica.

A minha audição também era constantemente testada a bordo do Le Soléal. Observar baleias, por exemplo, exigia o apuramento dos ouvidos para não perder nenhum movimento inusitado dos cetáceos. O som do sopro forte das baleias a expirar era o anúncio para uma nova aparição, e era por isso que estávamos lá.


UM SOM NOVO


Durante a convencional reunião-aula que antecede as atividades, o glaciologista a bordo, Alex Julien, tratava da formação de icebergs e explicava que a velocidade do movimento de desprendimento das peças de gelo variava de geleira para geleira. Neko Harbor era a primeira parada do dia e o local tinha uma observação bem interessante: essa é a geleira que se desfaz com maior velocidade na região.


Isso não significa que há gelo caindo para a água continuamente, esse acontecimento imprevisível pode se dar a qualquer momento, mas a recomendação era para que ficássemos alertas. Deveria então ficar olhando fixamente para os paredões de gelo? Não, você vai saber quando algo estiver se mexendo por lá, me garantiam.


Já em terra durante a caminhada por Neko Harbor, a geleira comprovava aquilo que os especialistas haviam nos dito na véspera. Um estrondo grave e amplo, um arrastar pesado de mobília em uma sala vazia, anunciava a atividade. Mas tudo se restringia a som, não víamos nada acontecer. Os naturalistas nos olhavam animados. Sim, é a geleira, algo está mexendo nela mas muitas vezes é uma reacomodação interna, longe dos nossos olhos.


A subida em neve fofa seguia. Alguns minutos mais tarde, enquanto eu estava parado tentando entender toda a magnitude da geleira a minha frente, aconteceu. Um trovão intensamente grave ecoou por toda baía demandando o silêncio de todos. Respeitamos. Era um som diferente de tudo o que meus ouvidos já haviam captado nessa vida. Meu coração disparou, imaginei que estaria testemunhando um desprendimento significativo naquela geleira que parecia chegar aos milhares de metros de comprimento.


Era um fragmento que havia caído. Coisa ínfima perto de todo aquele tabuleiro rachado de gelo branco azulado. Um pequeno bloco de gelo se desprendera e a consequência foi um estrondo como eu jamais havia ouvido. Aquele som ressoou em minha cabeça pelos minutos seguintes. Era preciso fechar os olhos e rememorar, vez atrás de vez, para compreender. Minha audição tinha catalogado um som novo e eu levaria ele comigo.


Renato Machado
Ao fim, uma homenagem aos especialistas da Ponant, que tanto trabalharam para organizar as expedições
Ao fim, uma homenagem aos especialistas da Ponant, que tanto trabalharam para organizar as expedições
A DESPEDIDA


O adeus à Antártica ocorreu naquela tarde, em passeio e navegação por Paradise Bay. A costa que hospeda a base militar argentina Almirante Brown nos recebia com sol intenso para mostrar mais uma vez o quão colorida era a terra de gelo. Do topo de um monte tinha-se uma vista privilegiada da baía. A água calma como piscina refletia geleiras, icebergs e montanhas, num espelho perfeito, estático, límpido.


A bordo do Zodiac fizemos nosso giro final. Rochas e uma tímida vegetação, pássaros aninhados. Pedaços de gelo por toda a baía, fragmentos, blocos, icebergs. E a vida, sempre. Os pinguins eram coadjuvantes formidáveis, ágeis e organizados enquanto nadavam. Captavam nossa atenção para que nos preparassem para a protagonista da tarde, uma jubarte. Próxima do bote, em aparição ligeira. Banhada da água e da luz dourada do sol de fim de dia, ela nos deixou.


Acabava ali minha interação com a Antártica e toda sua intensa vida. Agora era hora de aproveitar (ou se segurar para) a Passagem de Drake. Era também hora de cuidar das minhas memórias, guardá-las em um cantinho seguro sem saber se um dia eu vou conseguir compartilhar tudo o que vivi nesta viagem. A sensação é a de que tenho comigo uma geleira inteira de memórias e que este diário de bordo foi só aquele fragmento barulhento que tocou a água.


Para ler os relatos anteriores do diário de bordo, clique nos links: parte 1, parte 2, parte 3, parte 4, parte 5, parte 6 e parte 7. Confira também a edição desta semana da Revista PANROTAS, que traz em sua capa uma matéria completa sobre esta expedição.


Veja mais fotos no álbum abaixo


O Portal PANROTAS viajou a convite da Qualitours e da Ponant

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