Milei quer desregulamentar agências na Argentina; quais as consequências?
Presidente da Argentina chama as agências de monopolistas e diz que setor precisa de mais concorrência
Desde que assumiu a presidência da Argentina no final do ano passado, Javier Milei tem causado certo furor no setor de Turismo do país. Pouco depois de tomar posse do cargo, ele anunciou o corte do Ministério do Turismo, incorporando-o ao Ministério do Interior como secretaria, pasta para a qual foi nomeado Daniel Scioli, então embaixador do país no Brasil.
Depois, no dia 21 de dezembro, o Diário Oficial da Argentina publicou um Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) assinado por Milei para desregulamentar a economia, com mais de 300 reformas. Neste decreto, o presidente inclui a revogação da Lei nº 18.829, que resulta na extinção do Registro das Agências de Viagens e dos requisitos necessários para a habilitação dos profissionais do setor.
Em um dos parágrafos do DNU, Milei afirma que "a revogação da Lei nº 18.829 é fundamental para aumentar a oferta dos empreendimentos turísticos, deixando a atividade totalmente desregulamentada, resultando em maior concorrência entre as empresas do setor e em benefício dos cidadãos". Para Milei, o aumento do fluxo turístico e o crescimento do setor estão relacionados à multiplicação das agências de viagens. O presidente argentino ainda chama as agências de “monopolistas”, ainda que reconheça a importância do Turismo para o desenvolvimento econômico do país.
Como isso afeta as agências de viagens?
Os impactos que isso gera para as agências de viagens - e seus passageiros - são muitos, de acordo com a Federação Argentina de Associações de Empresas de Viagens e Turismo (Faevyt), que trabalha para neutralizar a decisão do presidente Milei e tem se posicionado contra a o fato de as agências serem consideradas monopolistas, alegando que o setor já é competitivo por si só.
“Na Argentina existem mais de cinco mil agências de Viagens e Turismo, é uma atividade claramente competitiva, composta por mais de 80% de PMEs que trabalham em cada província e cidade. É por isso que temos sido tão claros neste ponto, não somos uma atividade monopolista - e mais - na Faevyt trabalhamos constantemente para expandir e diversificar o nosso setor, promovendo oportunidades de negócios e a grande contribuição que as empresas de viagens dão ao país em termos econômicos e produtivos”, destaca o presidente da Faevyt, Andrés Deyá.
Segurança dos viajantes em risco
A segurança dos viajantes pode ser colocada em risco com a desregulamentação das agências. Como destacou reportagem do Ladevi (parceiro da PANROTAS na Argentina), a partir do momento em que as agências não possuem profissionais habilitados para exercer a função, a responsabilidade das mesmas diante de reclamações de passageiros afetados ou prejudicados por normas não cumpridas acaba sendo reduzida, pondo em risco a segurança dos mesmos.
“É fundamental não eliminar o Cadastro Nacional de Agências de Viagens, ferramenta que proporciona um quadro de proteção não só às empresas, mas também aos consumidores, garantindo a eles a legalidade e o profissionalismo necessários à especificidade do serviço comercializado”, comenta Andrés Deyá. Ele conta que a federação tem participado de todas as mesas de trabalho, debates e reuniões que se realizam desde a apresentação do DNU; seja expondo opiniões na reunião conjunta de comissões da Câmara Nacional dos Deputados ou por meio do apelo feito ao Ministro do Interior Guillermo Francos, em que a associação pede previsibilidade e regras claras para o setor.
“Apresentamos também um pedido de que o Cadastro Nacional de Agências de Viagens não seja eliminado e seja encaminhado à nossa instituição, para que possamos nos autorregular sem que haja qualquer vazio jurídico que prejudique a atividade ou coloque em risco os direitos dos viajantes”
A Faevyt também emitiu um comunicado destacando seu posicionamento e a abertura ao diálogo com o presidente Milei, deixando claro que apoia parte da alteração das leis nº 18.828 e nº 26.356 (a primeira regulamenta a hotelaria e, a segunda, os sistemas de tempo compartilhado no Turismo) porque se referem a questões obsoletas ou atualmente inaplicáveis, mas que se opõe à desregulamentação das agências de viagens.
Como a DNU de Milei afeta os hotéis?
As medidas propostas por Milei impactam também na hotelaria argentina. “Somos prejudicados pela revogação da Lei 27.221, que regulamentava os aluguéis temporários turísticos (ATT) em âmbito nacional, prevendo que não deveriam ser considerados locações, mas sim contratos de hospedagem. Embora a regulamentação final dos ATTs dependa dos governos provinciais e/ou municipais, ter uma estrutura nacional à qual as províncias possam aderir facilita a gestão do controle que até agora foi assumida por quase nenhum governo provincial na Argentina e por poucos governos estaduais no mundo. Esta concorrência desleal ainda não teve uma resposta verdadeiramente empenhada por parte de quem nos governa”, comenta a presidente da Associação de Hotéis de Turismo (AHT) da Argentina, Gabriela Ferrucci.
“Vemos uma oportunidade e um desafio na modificação do artigo 958 do Código Civil e Comercial, que privilegia o princípio da liberdade contratual, uma vez que as partes podem dar aos contratos o conteúdo mais amplo e livre. Hoje somos regidos por regras neste sentido que foram ditadas há mais de 150 anos, quando a hospitalidade como tal não existia”, complementa Gabriela.
"Por fim, o capítulo referente à Reforma Trabalhista (atualmente suspensa por medida cautelar) reflete com mais precisão a evolução das relações trabalhistas atuais (e.g. banco de horas, etc.) e gera maior previsibilidade nos contratos de trabalho, reduzindo fundamentalmente as implicações que tanto prejudicam as PMEs argentinas".
Ainda segundo ela, os hotéis consideram que é necessário gerar uma discussão profunda e consensual das alterações propostas, de forma a gerar condições de investimento sustentadas e previsíveis a médio e longo prazo.
Relação Brasil x Argentina pode ser afetada?
Quem trabalha no setor de Turismo sabe que os laços que unem Brasil e Argentina são muito fortes. Prova disso é o nítido aumento, nos últimos quatro anos, da presença da Argentina nas feiras de Turismo do trade brasileiro, considerando o fato de que o Brasil é o principal mercado emissor internacional para o país hermano.
Diante das propostas de Milei, fica a questão: qual será o impacto dessas mudanças no Turismo argentino – e, mais – na relação turística com o Brasil?
“Não podemos perder de vista o fato de que o Turismo argentino é uma das atividades que mais contribuem para a economia: representamos 8,3% do PIB; somos o 5º complexo exportador argentino; e a atividade que liderou a geração de empregos nos últimos meses. Acreditamos que é isso que devemos enviar a cada mesa de trabalho com o atual governo, para que a mudança de Ministério para Secretaria não tenha impacto direto no crescimento do Turismo e em todo o potencial que ainda temos por explorar. Estamos disponíveis e preparados para trabalhar em equipe pelo bem-estar do setor, que é uma das únicas atividades que acontecem em cada província e cidade argentina”, destaca o presidente da Câmara Argentina de Turismo, Gustavo Hani.
No que diz respeito às relações com o Brasil, ele acredita que não serão afetadas: “Historicamente, Argentina e Brasil tiveram um intercâmbio turístico muito dinâmico. As estatísticas mostram que a Argentina tem sido para o Brasil e o Brasil para a Argentina um dos principais países na geração de receitas de turistas internacionais. Esta situação pode ter oscilado ocasionalmente devido à situação cambial, mas o interesse em visitas recíprocas sempre foi muito forte. Ambos os países possuem atrações turísticas muito importantes e isso deve ser a base para continuar sustentando esse intercâmbio ao longo do tempo”, destaca.
Gabriela Ferrucci, da Associação de Hotéis de Turismo da Argentina, endossa essa opinião. “Entendemos que a Argentina hoje é um destino muito atraente para o Turismo regional e a chegada de visitantes brasileiros a Buenos Aires teve um forte aumento nos últimos dois meses, com demanda maior do que a esperada em janeiro. É provável que parte dessa demanda tenha sido motivada pelo aumento de frequências aéreas que a Gol realizou durante o verão (hoje a companhia aérea oferta 120 frequências semanais entre Argentina e Brasil – 70% dessa conectividade é entre a capital argentina e cidades brasileiras). Desde que a valorização do câmbio seja mantida com crescimento constante, a inflação não deverá afetar os brasileiros que viajam para a Argentina. O que notamos atualmente é que os níveis de crescimento dos diferentes produtos e serviços evoluem de forma muito desigual, gerando assim uma grande distorção nos preços relativos, o que poderá impactar as decisões presentes ou futuras dos turistas”, destaca Gabriela.
Ontem (7), o pacote de reformas econômicas proposto por Milei e conhecido como “Omnibus” voltou à fase inicial de tramitação no Congresso, após solicitação por parte de alguns deputados. Resta saber qual será o futuro da regulamentação das agências de viagens no país.